Sessão Ghibli #6 - Contos de Terramar

Contos de Terramar é um caso estranho no Studio Ghibli: é bem violento e menos inspirador que seus companheiros. Se considerarmos que ele foi lançado poucos anos depois de 'A Viagem de Chihiro' e 'O Castelo Animado', essa transição para algo sombrio parece ainda mais brusca. Estamos diante de um dos filmes menos amados deste estúdio e qual será a opinião do blog?

Gedo Senki (ゲド戦記), conhecido no mundo como Tales from Earthsea, foi lançado em 29 de julho de 2006 e foi dirigido por Gorō Miyazaki, filho de Hayao Miyazaki e este foi o seu primeiro filme. O anime foi baseado na série de livros "Terramar", iniciada em 1968 pela autora estadunidense Ursula K. Le Guin, que faleceu em 2018. Até o final do ano passado, quando o desastroso 'Earwig and the Witch' (do mesmo diretor) foi lançado, 'Contos de Terramar' possuía a menor nota dentre todos os filmes do Studio Ghibli no Rotten Tomatoes: 43% - o vencedor agora tem 33%.

Nem é preciso dizer que Le Guin não ficou muito feliz com a adaptação que recebeu. As expectativas eram altas visto que 'O Castelo Animado' (2004), que tem uma proposta semelhante e também é uma adaptação, foi um sucesso absoluto de crítica e bilheteria. 'Terramar' estava destinada a falhar desde os anos 80, quando Miyazaki pai procurou a autora pedindo por uma adaptação e ela não permitiu. Anos depois, a moça mudou de ideia, mas produzir animes leva tempo e Miyazaki filho surgiu em cena para dirigir o projeto, seu pai não ficou muito animado com a ideia pela inexperiência do rapaz e há rumores de que os dois brigaram feio.

A história junta quase todos os livros da coleção em um único filme e é sobre um mundo onde o equilíbrio está se desfazendo e tudo está desmoronando: a seca está mais forte do que nunca, pestes estão atormentando a população, feiticeiros não são bem vistos e dragões estão aparecendo para os humanos, depois de anos desaparecidos. No meio de toda essa confusão, o príncipe Arren foge do castelo após cometer um pequeno grande delito e é resgatado por Ged (ou Gavião). Juntos, eles embarcam numa jornada e encontram Therru, uma jovem com um passado trágico, e Tenar, uma velha amiga de Ged. O objetivo dos protagonistas é descobrir o que está causando o caos no mundo e restaurar a ordem natural das coisas.

O objetivo de Ged, para falar a verdade, é isso aí que eu falei no parágrafo anterior porque o que os outros personagens "do bem" querem é um pouco ambíguo. Se o Studio Ghibli conseguiu criar tantas personalidades inesquecíveis no passado, em 'Terramar' o elenco é um dos pontos mais fracos da produção. Arren tinha potencial para ser um bom herói e é a primeira vez, desde 'Porco Rosso' (1992), que um homem protagoniza um filme do estúdio. Porém, o príncipe é desperdiçado por ter uma profunda estupidez já que ele parece não escutar nada do que as pessoas falam quando tentam ajudá-lo e passa a imagem de ser um típico adolescente "eu queria estar morto". E a ironia é que ele tem muito medo de morrer.

Therru e Tenar, apesar de serem interessantes no início, não se desenvolvem ao longo da trama. Vi que muitos não gostaram das cenas na fazenda, mas achei um dos melhores momentos de 'Terramar' e elas foram as grandes responsáveis por me manter interessado no filme - pena que durou pouco. É normal criarmos grandes expectativas com as protagonistas desse estúdio, mas aqui a situação é outra. Fiquei intrigado com Therru por dizer que não gosta de quem não valoriza a vida e por sua atitude fria com o príncipe, quando a vida dela foi salva por Arren e ele lutou para sobreviver - mais um exemplo de personalidade jogada na tela sem muita justificativa. Por fim, Therru não tem muitas falas ou expressões faciais e acaba parecendo uma parede, sem reação.

Cob, o vilão, e Ged, o herói, também são difíceis de defender. A autora da obra original não concordou com a divisão clara entre bem e mal e queria que as discussões complexas dos livros estivessem no filme, pois a adaptação acaba caindo no clichê de lutar contra o chefão e salvar o mundo. É um bom clichê se os personagens forem bons, mas eles não são. Acredito que Ged poderia ser inteligente e incisivo com Arren porque em um momento ele diz que o país é perigoso e que o príncipe não deveria vagar sozinho. Depois, logo após ver seu amigo sendo encurralado por um traficante, ele deixa o adolescente ficar sozinho na cidade enquanto vai atrás de abrigo. Afinal Ged, é ou não perigoso?

O malvado Cob (ou Kumo) age por vingança por ter sido derrotado pelo Gavião e, tal como Arren, tem medo de morrer e quer a imortalidade, levando o mundo à loucura para isso. Nenhum vilão, na verdade, é feito de maneira correta. O traficante de escravos Hare (ou Usagi), além de ser um tarado (o que não encaixou no padrão do estúdio), fica soltando umas risadas sempre que aparece em tela porque é o melhor que ele pode fazer. Enfim, tudo parece muito monótono e sem personalidade, como se as coisas tivessem sido colocadas de maneira artificial e não seguindo uma relação de causa e consequência.

Não tenho apenas críticas. Curiosamente, a relação entre Arren e Therru vai ficando cada vez mais bela e eu me vi torcendo para que ficassem juntos (coisa rara), a cena final é emocionante e, apesar da história ter vários erros no desenvolvimento, a conclusão do enredo principal satisfaz um pouco. O grande ponto positivo, porém, é a produção do ponto de vista técnico. Miyazaki filho pode não ter herdado a capacidade do pai de transparecer emoções pela tela, mas ele certamente herdou a habilidade de animar as cenas. 

Se 'O Conto da Princesa Kaguya' lembra as artes tradicionais do Japão, 'Terramar' é como uma pintura renascentista e as cores são lindas. Hoje em dia todo mundo quer animes com cenas realistas, mas gosto mesmo é dessa arte "artificial" onde é possível ver que alguém desenhou e animou em estúdio, se eu quisesse algo realista iria assistir um live-action. A trilha sonora é perfeita, é claro, e reforçou o tom medieval do universo. Se eu chorei, foi ouvindo a canção de Therru, de longe o melhor momento nas duas horas de duração. O instrumental me lembrou 'Coração Valente' (1995), aquele do Mel Gibson lutando pela independência da Escócia. Vou deixar aqui minha queixa à Netflix por enfiar esses trailers de coisas que ninguém quer ver justo na hora dos créditos.

Por fim, não estou aqui criticando a obra original, até porque estou morrendo de vontade de ler os livros - e vou ler e falar deles aqui no blog qualquer dia desses. É evidente que há muito potencial e que poderia ter sido uma sequência de filmes, o Studio Ghibli lucraria bastante e a história não seria tão comprimida e confusa, cheia de informações que quero entender e não consigo. A questão dos poderes e "saber o nome verdadeiro das coisas" é profunda e evita a construção de personagens "overpowered", há um equilíbrio na magia e seria legal ter tido uma linha do tempo mais conectada para explorarmos essa profundidade.

Por ser o primeiro trabalho de Miyazaki filho, até poderíamos relevar esses erros e dizer que ele tentou seu melhor, mas o pai dele e a autora não queriam que a adaptação ficasse sob sua responsabilidade, então não foi falta de aviso e podemos criticar sim. Nem consegui tirar uma mensagem forte e olha que hoje estou inspirado, não é por nada que a autora disse que o filme era uma história e a saga é outra e que Miyazaki pai disse que seu filho ainda não era um adulto, após ter visto o anime (Goro tinha quase 40 anos). 

O saldo final é bom e ruim ao mesmo tempo - uma amiga me disse isso e não tinha entendido, mas agora entendo e só essa frase pode definir a adaptação 'Contos de Terramar'. Se eu cheguei perto de chorar no finalzinho não foi pela emoção do longa, mas pelo desperdício dos livros e do que nunca vamos receber. O cinema nos reserva essas tragédias. Quem quer Studio Ghibli fazendo violência pode assistir 'Princesa Mononoke' (1997).

Semana que vem trarei a review de 'O Serviço de Entregas da Kiki', de 1989. Esse é um dos clássicos, se fosse você não perderia.

Link no My Anime List caso queira ler mais reviews: Ged Senki (Tales from Earthsea).

Comentários

  1. Cris, você escreve muito bem! Adorando ler os textos sobre os filmes do Studio Ghibli :)

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