Sessão Ghibli #5 - A Viagem de Chihiro

[Este post será longo e recomendo não lê-lo se tiver menos de 14 anos] 

O momento tão aguardado chegou, o dia de falarmos de 'A Viagem de Chihiro'. Dentro do extenso catálogo do Studio Ghibli, nenhuma outra obra é tão famosa e reconhecida quanto esta. Será que vale toda a reputação? Vamos descobrir.

Sen to Chihiro no Kamikakushi (千と千尋の神隠し), cujo nome em inglês é Spirited Away, foi lançado em 20 de julho de 2001. A direção ficou por conta de Hayao Miyazaki, um dos fundadores e talvez o nome mais famoso do Studio Ghibli, e ele também escreveu o roteiro. Esse é o primeiro filme original que analisamos aqui no blog, já que todos os antecessores foram adaptações de livros, mangás ou lendas.

Esta é a história de Chihiro, cujos pais são transformados em porcos após entrarem em uma cidade aparentemente abandonada. Durante a noite, o local revela ser habitado por espíritos e muitos vem de longe para descansar na casa de banho local, gerida pela bruxa Yubaba. A protagonista é ajudada por Haku, um menino com poderes misteriosos, e consegue um emprego na casa de banho. Seu nome lhe é tirado e ela passa a ser chamada de Sen, e trabalha enquanto pensa numa forma de salvar seus pais e retornar ao mundo humano.

Que filme complicado e macabro. É complicado de assistir, de definir e até de resumir em dois parágrafos, pois há muita informação. Miyazaki, o diretor, é conhecido por essas ideias mirabolantes e pela quantidade de mensagens críticas que ele coloca em seus filmes, tem quem ame e tem quem odeie. Eu amo.

Primeiro, 'A Viagem de Chihiro' é carregado de elementos do folclore japonês. A própria casa de banho é um tipo de estabelecimento relativamente comum e antigo no Japão. Os espíritos que vêm descansar não podem ser apenas vistos como "almas de pessoas que já morreram", como interpretamos aqui no Brasil, mas representações de elementos da natureza, animais, pessoas e outras coisas - a palavra correta, então, seria kami

Quando o nome de Chihiro muda para Sen, há quem interprete isso como uma alusão à escravidão, à perda da identidade e inclusive, à prostituição infantil. Essa última teoria é bem interessante (e trágica) pois, segundo ela, a casa de banho representa um ambiente que podia ser utilizado como bordel no passado. Ao ser obrigada a trabalhar para salvar seus pais e sem a possibilidade de voltar para casa, tendo sua identidade retirada à força, a garota passa por uma situação comum no tráfico sexual e na prostituição, onde crianças são vendidas ou tiradas de suas famílias para o pagamento de dívidas.

O Japão possui uma longa e sombria história com violência sexual, sendo a Segunda Guerra Mundial o momento mais notável dessa "mancha". A indústria pornográfica está presente nos animes hentai, inclusive. Para Miyazaki, que já criticou o orgulho japonês e a Guerra do Iraque, coragem não deve faltar para expor ao mundo a perversão da exploração sexual de menores, mas pode assistir tranquilamente porque não há cenas eróticas e essa interpretação vem de detalhes no ambiente e nos personagens. 

O personagem mais famoso também é o que melhor representa essa teoria: Kaonashi (No-face). Ele é um espírito que anda ao redor da casa de banho e se interessa pela protagonista. Eventualmente, ela o deixa entrar escondido e, em troca da gentileza, ele a ajuda em alguns momentos. Kaonashi não possui personalidade definida, ele repete o que vê ao seu redor: quando ajudado pela menina, passa a querer ajudá-la, mas quando vê a ganância do povo por ouro, se torna ganancioso e insaciável, destruindo tudo pela frente.

Muitos enxergam esse personagem como uma representação de pedófilos, já que ele que tenta comprar Chihiro a todo custo por meio de presentes e favores. Quando a menina escapa de todas as suas propostas, ele mesmo a persegue e ela crê que a casa de banho é uma má influência para seu amigo e decide tirá-lo de lá. Se o estabelecimento pode representar a prostituição, quantos casamentos e relacionamentos entre pais e filhos são destruídos pela indústria do sexo? 

Ao fugir, Kaonashi volta a ser o espírito gentil e carinhoso que vimos antes, abandonando as más influências que o tornaram um monstro irreconhecível. E ele não representa só essa perversão, mas todas as pessoas em situações normais também, pois somos influenciados pelo meio em que vivemos - refletimos nossa família, amigos, etc.

Outros temas pesados também são retratados, tais como o consumismo da sociedade moderna. O pai de Chihiro diz que tudo vai ficar bem porque ele tem dinheiro e cartões de crédito e, junto com sua esposa, come a comida de outra pessoa achando que pode se justificar pagando depois. A transformação dos dois em porcos revela o que nos tornamos nesse sistema, ou seja, pessoas desprovidas de humanidade, que vivem apenas para consumir enquanto esperam a hora em que não serão mais produtivos e morrerão. Ainda criança, a filha implora para ir embora, revelando que ainda tem inocência e não foi engolida por esse pensamento centrado no dinheiro e no consumo.

Onde há críticas ao consumismo, é bem provável que haja mensagens em prol do meio ambiente. O espírito do rio, que protagoniza um dos melhores momentos do filme, é identificado como um kami imundo e indesejável devido à sua aparência e o seu cheiro horrível. Vemos então que aquele não é seu aspecto verdadeiro e ele foi um rio poluído pelos humanos, desaparecendo em meio ao lixo. Desaparecer, aliás, é o que significa to spirit away e kamikakushi seria sumir e ir ao mundo dos espíritos (kami).

O último tema é o crescimento e a identidade. Haku, amigo e paixão de Chihiro, não se lembra mais de seu nome ou de quem era e todo os outros ali tiveram suas identidades tomadas por Yubaba, a antagonista. A menina precisa se virar sem seus pais em um mundo que já existia antes de chegar e que não vai esperar por ela, tal como a realidade dos humanos. Entre os adultos, não há tempo para duvidar ou para ser desajeitado, mas para seguir ordens. 

Até esse ano, 'A Viagem de Chihiro' possuía a maior bilheteria da história do Japão com quase US $400 milhões, mas foi superado por aquele filme chato de Demon Slayer (isso vindo de um fã do anime e do mangá). A história do Studio Ghibli trouxe mais pessoas aos cinemas japoneses do que 'Titanicou 'Frozen' e é a única animação não-estadunidense a ganhar o Oscar de Melhor Animação, em 2003. Ela ganhou de 'Lilo & Stitch', 'A Era do Gelo', 'Spirit' e 'O Planeta do Tesouro'. Mais do que merecido, são 97% de aprovação no Rotten Tomatoes, 96 pontos no Metacritic e presença garantida em todas as listas de melhores filmes do século (ou de todos os tempos).

Para encerrar esse post interminável, eu adorei o filme mais do que na primeira vez que vi. As duas horas de duração passam incrivelmente rápido e a trilha sonora é (como sempre) perfeita, tendo um aspecto que a única palavra que consigo usar para definir é "majestoso". Sempre que você falar "isso é muito sonhador", lembre-se que com 'A Viagem de Chihiro' essa frase pode ser usada no sentido literal porque é o mesmo que enxergar um sonho. Os elementos são absurdos e criativos, deixando qualquer um de queixo caído. A animação é a única coisa que não me impressionou tanto, é bem feita sem dúvida alguma, mas não tão impressionante quanto os outros do Studio Ghibli. 

Termino dizendo que esse é um filme quase perfeito, mas não é para todos. Se não gostar, não é porque você é diferente ou pensa fora da caixinha, mas porque é um pouco difícil (não no sentido de complexidade) de assistir mesmo. Dê uma chance e aproveite os elementos religiosos e a evolução da personagem principal enquanto pessoa, não precisa assistir pensando nos assuntos mais sombrios se não quiser, apenas veja.

Semana que vem trarei a review de 'Contos de Terramar', de 2006. Será que finalmente estarei criticando um filme aqui neste blog? Veremos.

Link no My Anime List para ler mais reviews: Sen to Chihiro no Kamikakushi (Spirited Away) .

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